A sucessão hereditária é, além de um instituto patrimonial, uma expressão dos valores morais que estruturam o direito civil. O Código Civil brasileiro, ao prever a indignidade sucessória nos artigos 1.814 a 1.818, impõe uma sanção civil àquele que, por conduta gravemente ofensiva contra o autor da herança, perde o direito de suceder. Tal mecanismo traduz o princípio ético segundo o qual ninguém pode se beneficiar da própria torpeza, reafirmando que o direito de herança deve estar condicionado ao respeito à vida e à dignidade do falecido.
Diferentemente da deserdação, que depende da manifestação expressa de vontade do testador, a indignidade decorre diretamente da lei e é declarada por sentença judicial, independentemente da vontade do autor da herança. O artigo 1.814 do Código Civil elenca hipóteses típicas de exclusão: homicídio doloso ou sua tentativa contra o autor da herança, seu cônjuge, companheiro, ascendentes ou descendentes; acusação caluniosa ou crime contra a honra; e impedimento, por violência ou fraude, de que o autor disponha livremente de seus bens. O fundamento dessas hipóteses é claro, não pode o ordenamento jurídico admitir que o agressor usufrua do patrimônio de quem vitimou ou desonrou.
Um marco relevante na evolução do tema foi a Lei nº 13.532/2017, que conferiu legitimidade ao Ministério Público para propor ação de exclusão por indignidade nas hipóteses de homicídio ou tentativa. Antes dela, apenas os herdeiros interessados poderiam requerer judicialmente a exclusão, o que, em casos de homicídio familiar, tornava o processo muitas vezes inviável. A mudança legislativa surgiu de debates intensificados pelo caso Suzane von Richthofen, no qual se discutia a exclusão da filha que havia sido condenada pelo assassinato dos pais. A partir de então, o Estado passou a reconhecer o interesse público em evitar que o autor de um crime tão grave herdasse de sua vítima.
A discussão sobre a coerência entre o direito penal e o direito civil levou a uma nova e significativa alteração legislativa: a Lei nº 14.661, de 2023. Esse diploma aperfeiçoou o regime da indignidade ao estabelecer a exclusão automática do herdeiro indigno nos casos de condenação criminal transitada em julgado por homicídio doloso ou feminicídio praticado contra o autor da herança, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente. Assim, quando há sentença penal condenatória definitiva, o herdeiro é afastado da sucessão independentemente de ação própria, conferindo maior celeridade e efetividade à sanção civil. Essa lei representa a culminação de um processo evolutivo que reforça a unidade do sistema jurídico e o repúdio estatal a condutas que afrontam os valores da vida familiar e da moral social.
Casos concretos de grande repercussão ilustram a aplicação prática e os dilemas do instituto. No caso Suzane von Richthofen, a exclusão foi reconhecida judicialmente, consolidando o entendimento de que a herança não pode ser instrumento de impunidade. No caso Elize Matsunaga, a discussão centrou-se na diferença entre o direito à herança e o direito à meação, uma vez que a indignidade não alcança a parte dos bens comuns adquiridos durante o casamento, conforme o regime de bens. Já no caso Cid Moreira, amplamente debatido pela imprensa, discutiu-se a possibilidade de deserdação em virtude de abandono afetivo e maus-tratos, o que reforça a importância de distinguir indignidade (de natureza legal) e deserdação (de natureza volitiva).
A doutrina contemporânea reconhece, contudo, que o instituto ainda apresenta desafios interpretativos. Discute-se, por exemplo, se seria admissível o reconhecimento da indignidade fora das hipóteses estritas do Código Civil, em casos de extrema ingratidão, abandono moral ou violência psicológica, a partir de uma leitura principiológica fundada na boa-fé e na dignidade da pessoa humana. Há também quem alerte para o risco de banalização do instituto e seu uso estratégico em disputas patrimoniais, devendo-se preservar seu caráter excepcional e seu rigor probatório.
Em síntese, a indignidade sucessória representa um ponto de equilíbrio entre o direito e a moral, traduzindo a ideia de que o patrimônio não pode recompensar a deslealdade e a violência. A trajetória legislativa, marcada pela ampliação da legitimidade do Ministério Público e pela criação da exclusão automática do herdeiro indigno pela Lei nº 14.661/2023, demonstra a constante evolução do direito sucessório em busca de maior coerência ética e justiça material. Casos como os de Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga e Cid Moreira revelam que, no campo das sucessões, herdar é um direito condicionado à dignidade do comportamento humano.
Por Mariana Campelo Monte

